Mário Scheffer, professor do Departamento de
Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, na área de Política,
Planejamento e Gestão em Saúde, é um estudioso do sistema de saúde
brasileiro.
Mestre e doutor em Ciências da Saúde, também concluiu dois programas de
Pós-Doutorado, um naFMUSP, outro na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa
de São Paulo.
Especialista em Saúde
Pública pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF),
Mário Scheffer aborda nesta
entrevista, feita por e-mail, as demandas e os principais desafios doSistema
Único de Saúde. Também faz uma avaliação sobre a atuação dos planos de saúde e
criticaa rede insuficiente, as filas de espera, a má remuneração dos médicos,
entre outros.
O professor também foi
membro titular do Conselho Nacional de Saúde (CNS), da Comissão Nacional de Ética
em Pesquisa (CONEP) e da Câmara de Saúde Suplementar da Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS). Atuou em entidades médicas, respondendo pela
comunicação do Sindicato dos Médicos de São Paulo, Associação Paulista de
Medina, Cremesp, CFM, além de coordenar a pesquisa Demografia Médica no Brasil
O SUS completa 25 anos em
2013, juntamente com a Constituição Federal. Como estudioso do sistema de
saúde, quais são hoje os maiores desafios?
Nesse um quarto de século, o
SUS já demonstrou sua potencialidade, mas ainda é uma reforma incompleta, não
assegurou o acesso à saúde de qualidade a todos os cidadãos. Mesmo cheio de
falhas, é um patrimônio dos brasileiros, responsável por uma produção
impressionante de consultas, exames, internações; ampliou o acesso à atenção
básica e serviços de emergência, diminuiu a mortalidade infantil, dá cobertura
universal de vacinação e de assistência prénatal; eliminou o sarampo;
interrompeu a transmissão do cólera, da rubéola; fez reduzir drasticamente o
percentual de fumantes no país e mantém um sistema exemplar de transplantes, de
imunizações e de tratamento da aids, dentre tantos exemplos. Porém, sofremos
com as agruras de ter um sistema de saúde com recursos públicos insuficientes,
um sistema estratificado com imensas esigualdades de acesso da população.
É importante dizer que as
bases legais e normativas já estão estabelecidas, o sistema já adquiriu
experiência operacional, mas o Sistema Único de Saúde (SUS) hoje não tem
sustentabilidade financeira e muito menos política. O SUS não é prioridade dos
governos, mas é alentador notar que nas recentes mobilizações de rua o SUS está
sendo defendido por muitos manifestantes, ou seja, parte da população valoriza
e quer um sistema público melhor.
Então o maior problema é
político? E como você vê essas opções pela privatização do SUS?
Exatamente, as respostas não
virão apenas das esferas legais e técnicas. Foram decisões políticas,
inclusive, que aceleraram a privatização do nosso sistema de saúde. Hoje
assistimos o protagonismo do setor privado, tanto no financiamento, na forma de
pagar os serviços; quanto na prestação, na forma de fornecer a assistência; e
agora na gestão, entregue em grande escala às organizações privadas. O sistema
de saúde brasileiro nunca será puro público ou puro privado.
Teremos que buscar as
mudanças nessa superposição de lógicas, considerando essa dualidade. O problema
não é o mix em si, mas a forma como as decisões vêm sendo tomadas para
favorecer o privado e para atender interesses particulares.
O financiamento da saúde
no Brasil é majoritariamente privado. Isso é um problema?
Temos um sistema público
universal subfinanciado e uma estrutura liberal, com predomínio de gastos
privados desembolsados por famílias, indivíduos e empresas, que compram planos
de saúde, serviços, medicamentos e insumos. Só 47% dos gastos de saúde do
Brasil são públicos, na contramão dos sistemas universais de saúde, que dispõem
de mais de 70% de recursos públicos, como Reino Unido, Canadá, Alemanha,
Itália, Espanha.
Quando temos mais gastos
privados, aumentamos as desigualdades de acesso, inviabilizamos a equidade,
pois diminuímos a característica redistributiva do financiamento do sistema de
saúde baseado nas taxas de impostos progressivos.
A conquista dos 10% das
receitas da União para a saúde resolveria essa situação?
O Sistema Único de Saúde
nasceu com problemas de financiamento. Em 1988 a Constituição dava ao SUS 30%
da receita da Seguridade Social, percentual que deixou de ser cumprido já em
1990. Em 1993 a saúde deixou de contar com os recursos da folha de salário e em
1997 a CPMF foi desvirtuada. A Emenda Constitucional 29 ajudou ao estabelecer a
vinculação de 12% das receitas de estados e 15% dos municípios e ao decidir que
a União deve reservar à saúde o montante aplicado no ano anterior corrigido pela
variação nominal do PIB. O critério derrotado, dos 10% da receita corrente
bruta da União, daria certamente um fôlego ao SUS. Aqui, vale dizer, que essa
bandeira dos 10% é uma falsa unanimidade em defesa do SUS, pois ela tremula
também sob a ótica contábil de alguns grupos privados e entidades corporativas
que reivindicam recursos para si. O SUS terá problemas enquanto prevalecer essa
política econômica, que defende a redução das despesas de custeio com as
políticas sociais para alcançar elevados superávits primários, para investir em
infraestrutura e abater divida pública. Ora, o Estado devia regular a economia
visando obter os recursos e cumprir a obrigação constitucional de dar saúde
para todos. Esse impasse conjuntural, somado às iniciativas de privatização,
têm agravado a crise do SUS.
Você fala da relação
público-privado mal regulada. Explique melhor.
O destino da nossa riqueza
coletiva está nas despesas públicas e privadas, não apenas nos gastos públicos.
Uma análise de cenários focada só em aumentar os recursos públicos estará
viciada por um erro sistemático. A agonia do SUS não passa somente pelo
subfinanciamento e pela má gestão. Nas mãos de quem circulam os atuais recursos
totais da saúde e como serão utilizados os possíveis novos aportes? Não estão
claras as responsabilidades que a coletividade entende que deve confiar ao
setor privado da saúde no Brasil. Além do peso do privado no financiamento, a
prestação também é privada: dos 6.300 hospitais do país, 70% deles são
privados; apenas 35% dos leitos hospitalares, 24% dos tomógrafos e 13% dos
equipamentos de ressonância magnética são públicos. Há evidências de que os
custos administrativos e assistenciais dos sistemas baseados em múltiplas
organizações públicas e privadas de compra e venda de serviços de saúde são
extremamente elevados e ineficientes.
Essa relação está
afastando o SUS de sua proposta original?
Sim. Devemos olhar para
todos os aspectos da relação público-privado, que estão mudando a fisionomia do
sistema de saúde brasileiro e afastando o SUS de sua missão original. Além do
finaciamento e da prestação privada, há o crescimento do mercado de planos de
saúde às custas de subsídios públicos e a entrega da gestão pública a
organizações privadas.
Repito que o privado
regulado é necessário ao sistema de saúde, mas só avançaremos se fundos
públicos ganharem aportes significativos, passando a financiar apenas serviços,
tanto públicos quanto privados, desde que includentes e deliberadamente
universais.
Como analisa o mercado de
planos de saúde no Brasil?
É um mercado que cresceu
artificialmente, às custas da regulação frouxa da ANS, capturada pelos
interesses do mercado. Saiu da Agência um presidente que antes era da Qualicorp
e acaba de ser reconduzido um diretor que já serviu à Amil. Há uma porta
giratória, que também destina cargos comissionados para ex-funcionários de
operadoras que retornam às empresas quando deixam a agência. Os planos de saúde
nunca prestaram serviços tão ruins, têm rede insuficiente, filas de espera, pagam
mal os médicos, vendem falsos planos coletivos para fugir da regulação, dão
calote no SUS, pois não fazem o ressarcimento.
Há um descontentamento
geral…
A indignação de médicos e
usuários desse setor já equivale ao descontentamento em relação ao SUS. Ano que
vem tem eleições, os planos doam recursos para candidatos que devolvem em
cargos e favores. Nos sistemas universais, planos privados representam a menor
parte dos gastos totais com saúde, não passam de 15%, aqui já atingem 25% da
população, graças ao crescimento de planos baratos no preço e medíocres na
cobertura.
E temos novidades que podem
levar à maior segmentação de coberturas e a planos ruins, como o poder
conferido às intermediadoras – a Qualicorp – e a chegada do capital
estrangeiro, com a venda da Amil para a United, maior seguradora americana, um
negócio aprovado a toque de caixa pela ANS e Cade.
Como anda o movimento
contra subsídios públicos aos planos, que tem o apoio do Simesp?
Com a evolução de
rendimentos de parte da população, com maior acesso a bens de consumo, o
governo federal, de olho nas eleições, aposta na preferência da população pelos
planos populares e acena com subsídios públicos às operadoras. É mais um golpe
que descaracteriza ainda mais o SUS como sistema universal. No mundo, a
ascensão das massas trabalhadoras impulsionou sistemas públicos de saúde
universais e robustos. Aqui querem seguir o exemplo que não deu certo, dos
Estados Unidos, veja-se a Reforma do Obama, que tenta colocar nos trilhos o
sistema mais caro do mundo e que excluiu tanta gente daquele país da
assistência. A presidente Dilma recebeu, em março, os donos de planos de saúde
para tratar de possíveis isenções e desonerações ao setor.
Há um movimento contrário
a esses subsídios…
Foi iniciado um movimento, liderado
pelo Idec, que já conta com dezenas de entidades e mais de 20 mil adesões
individuais e que defende o fim de subsídios públicos diretos e indiretos para
planos e seguros de saúde privados: atendimento de clientes de planos de saúde
em serviços do SUS, sem ressarcimento aos cofres públicos; gastos com planos
privados dos servidores públicos; revisão da renúncia fiscal, com dedução de
gastos com planos de saúde no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas;
fim de isenções tributárias a planos de cooperativas e de filantrópicos; e
limitação dos recursos do Tesouro Nacional destinados ao funcionamento da ANS.
É preciso haver um
reordenamento do mercado de planos de saúde, com estipulação de barreiras à
entrada de planos ruins, explicitação dos conflitos de interesse, isso casado
com a expansão da oferta pública e melhoria da qualidade da assistência no SUS.
Qual sua opinião sobre a
gestão por meio de organizações sociais?
Houve uma fase do embate
ideológico, plebiscitário, que foi superada, pois o modelo está implantado e
redes inteiras, como a estadual e a do município de São Paulo, estão reféns das
OSs. Além de dúvidas sobre a legalidade, faltam evidências se de fato tornaram
mais ágil e eficiente a gestão. Parece que as filas não diminuíram, o sistema
de saúde continua pouco resolutivo e os usuários seguem insatisfeitos. Não
houve economia para o SUS, pois as OSs consomem mais recursos e não investem em
infraestrutura, e há pouca transparência no cumprimento dos contratos, como
apontam os tribunais de contas, muitas nem entregam a produção contratada. A
rede de saúde da capital, por exemplo, foi esquartejada, há mais de 10
organizações gestoras, que promovem uma batalha salarial, uma concorrência
predatória, que leva à falta e alta rotatividade de médicos. Mantém contratos
precários, temporários, com CNPJ, cooperativas etc. Aniquilam a possibilidade
de estruturar um plano de cargos e salários.
As OSs se sobrepõem à
administração direta?
O duplo comando (OS e
prefeitura ou estado) não é só nas relações de trabalho mas na organização dos
serviços. Essa entrega da gestão para entidades tão heterogêneas entre si
dificulta padrões homogêneos e definidos de metas, funcionamento, gestão e
remuneração de pessoal. Sugiro uma espécie de moratória do modelo, a não
entrega de novas unidades para OSs, para que se possa fazer uma avaliação mais
profunda dos impactos. Será impossível retomar tudo para a administração direta
engessada.
Há outras propostas em
curso, parcerias público-privadas e Fundações Públicas de Direito Privado,
também polêmicas, e poderá haver um cenário de competição de várias modalidades
de gestão.
Me parece que esses modelos
privados fragmentados, que trabalham por produção e não se integram ao SUS,
tornarão difícil a instituição das regiões de saúde e a ordenação do acesso do
SUS pela atenção primária, assegurando a continuidade do cuidado, tampouco irão
solucionar gargalos dos serviços especializados, o acolhimento de doentes
crônicos e idosos, e a sobrecarga dos pronto-socorros, alguns dos grandes nós
do SUS.
Você é coordenador do
estudo Demografia Médica no Brasil. Faltam médicos? É realmente necessário
trazer profissionais de outros países?
O Brasil tem 400 mil médicos
mas faltam sim profissionais em inúmeros municípios, nas periferias e em vários
serviços do SUS. Há pessoas sofrendo e morrendo com a falta de médicos, não se
pode ser insensível a essa realidade.
Deveria haver uma combinação
de medidas. A melhoria da remuneração e condições de trabalho dos médicos, o
Provab, corrigindo as distorções desse programa, e o incentivo a estrangeiros,
desde que com a devida revalidação de diplomas, podem amenizar o problema em
curto prazo. A adoção de planos de carreira e o maior aporte de recursos para o
SUS só teriam efeito de médio prazo. Mas há o risco de o aumento global de
médicos, via abertura de mais escolas ou revalidação automática de diplomas
estrangeiros, levar esses novos médicos mal formados para os mesmos lugares
onde já há elevada concentração, nos grandes centros e no setor privado. Não
haverá solução definitiva sem mudanças estruturais no sistema de saúde, sem
mais financiamento público e sem a presença do Estado que diminua a
concentração regional da produção e da renda e que atraia profissionais às regiões
desassistidas.
Fonte: Revista Dr!, Maio/Junho de 2013