terça-feira, 13 de agosto de 2013

Planos de saúde nunca prestaram serviços tão ruins


Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina  da USP, na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, é um estudioso do sistema de saúde brasileiro.
Mestre e doutor em Ciências da Saúde, também concluiu dois programas de Pós-Doutorado, um naFMUSP, outro na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
Especialista em Saúde Pública pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
Mário Scheffer aborda nesta entrevista, feita por e-mail, as demandas e os principais desafios doSistema Único de Saúde. Também faz uma avaliação sobre a atuação dos planos de saúde e criticaa rede insuficiente, as filas de espera, a má remuneração dos médicos, entre outros.
O professor também foi membro titular do Conselho Nacional de Saúde (CNS), da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e da Câmara de Saúde Suplementar da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Atuou em entidades médicas, respondendo pela comunicação do Sindicato dos Médicos de São Paulo, Associação Paulista de Medina, Cremesp, CFM, além de coordenar a pesquisa Demografia Médica no Brasil
O SUS completa 25 anos em 2013, juntamente com a Constituição Federal. Como estudioso do sistema de saúde, quais são hoje os maiores desafios?
Nesse um quarto de século, o SUS já demonstrou sua potencialidade, mas ainda é uma reforma incompleta, não assegurou o acesso à saúde de qualidade a todos os cidadãos. Mesmo cheio de falhas, é um patrimônio dos brasileiros, responsável por uma produção impressionante de consultas, exames, internações; ampliou o acesso à atenção básica e serviços de emergência, diminuiu a mortalidade infantil, dá cobertura universal de vacinação e de assistência prénatal; eliminou o sarampo; interrompeu a transmissão do cólera, da rubéola; fez reduzir drasticamente o percentual de fumantes no país e mantém um sistema exemplar de transplantes, de imunizações e de tratamento da aids, dentre tantos exemplos. Porém, sofremos com as agruras de ter um sistema de saúde com recursos públicos insuficientes, um sistema estratificado com imensas esigualdades de acesso da população.
É importante dizer que as bases legais e normativas já estão estabelecidas, o sistema já adquiriu experiência operacional, mas o Sistema Único de Saúde (SUS) hoje não tem sustentabilidade financeira e muito menos política. O SUS não é prioridade dos governos, mas é alentador notar que nas recentes mobilizações de rua o SUS está sendo defendido por muitos manifestantes, ou seja, parte da população valoriza e quer um sistema público melhor.

Então o maior problema é político? E como você vê essas opções pela privatização do SUS?
Exatamente, as respostas não virão apenas das esferas legais e técnicas. Foram decisões políticas, inclusive, que aceleraram a privatização do nosso sistema de saúde. Hoje assistimos o protagonismo do setor privado, tanto no financiamento, na forma de pagar os serviços; quanto na prestação, na forma de fornecer a assistência; e agora na gestão, entregue em grande escala às organizações privadas. O sistema de saúde brasileiro nunca será puro público ou puro privado.
Teremos que buscar as mudanças nessa superposição de lógicas, considerando essa dualidade. O problema não é o mix em si, mas a forma como as decisões vêm sendo tomadas para favorecer o privado e para atender interesses particulares.
O financiamento da saúde no Brasil é majoritariamente privado. Isso é um problema?
Temos um sistema público universal subfinanciado e uma estrutura liberal, com predomínio de gastos privados desembolsados por famílias, indivíduos e empresas, que compram planos de saúde, serviços, medicamentos e insumos. Só 47% dos gastos de saúde do Brasil são públicos, na contramão dos sistemas universais de saúde, que dispõem de mais de 70% de recursos públicos, como Reino Unido, Canadá, Alemanha, Itália, Espanha.
Quando temos mais gastos privados, aumentamos as desigualdades de acesso, inviabilizamos a equidade, pois diminuímos a característica redistributiva do financiamento do sistema de saúde baseado nas taxas de impostos progressivos.
A conquista dos 10% das receitas da União para a saúde resolveria essa situação?
O Sistema Único de Saúde nasceu com problemas de financiamento. Em 1988 a Constituição dava ao SUS 30% da receita da Seguridade Social, percentual que deixou de ser cumprido já em 1990. Em 1993 a saúde deixou de contar com os recursos da folha de salário e em 1997 a CPMF foi desvirtuada. A Emenda Constitucional 29 ajudou ao estabelecer a vinculação de 12% das receitas de estados e 15% dos municípios e ao decidir que a União deve reservar à saúde o montante aplicado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB. O critério derrotado, dos 10% da receita corrente bruta da União, daria certamente um fôlego ao SUS. Aqui, vale dizer, que essa bandeira dos 10% é uma falsa unanimidade em defesa do SUS, pois ela tremula também sob a ótica contábil de alguns grupos privados e entidades corporativas que reivindicam recursos para si. O SUS terá problemas enquanto prevalecer essa política econômica, que defende a redução das despesas de custeio com as políticas sociais para alcançar elevados superávits primários, para investir em infraestrutura e abater divida pública. Ora, o Estado devia regular a economia visando obter os recursos e cumprir a obrigação constitucional de dar saúde para todos. Esse impasse conjuntural, somado às iniciativas de privatização, têm agravado a crise do SUS.
Você fala da relação público-privado mal regulada. Explique melhor.
O destino da nossa riqueza coletiva está nas despesas públicas e privadas, não apenas nos gastos públicos. Uma análise de cenários focada só em aumentar os recursos públicos estará viciada por um erro sistemático. A agonia do SUS não passa somente pelo subfinanciamento e pela má gestão. Nas mãos de quem circulam os atuais recursos totais da saúde e como serão utilizados os possíveis novos aportes? Não estão claras as responsabilidades que a coletividade entende que deve confiar ao setor privado da saúde no Brasil. Além do peso do privado no financiamento, a prestação também é privada: dos 6.300 hospitais do país, 70% deles são privados; apenas 35% dos leitos hospitalares, 24% dos tomógrafos e 13% dos equipamentos de ressonância magnética são públicos. Há evidências de que os custos administrativos e assistenciais dos sistemas baseados em múltiplas organizações públicas e privadas de compra e venda de serviços de saúde são extremamente elevados e ineficientes.
Essa relação está afastando o SUS de sua proposta original?
Sim. Devemos olhar para todos os aspectos da relação público-privado, que estão mudando a fisionomia do sistema de saúde brasileiro e afastando o SUS de sua missão original. Além do finaciamento e da prestação privada, há o crescimento do mercado de planos de saúde às custas de subsídios públicos e a entrega da gestão pública a organizações privadas.
Repito que o privado regulado é necessário ao sistema de saúde, mas só avançaremos se fundos públicos ganharem aportes significativos, passando a financiar apenas serviços, tanto públicos quanto privados, desde que includentes e deliberadamente universais.
Como analisa o mercado de planos de saúde no Brasil?
É um mercado que cresceu artificialmente, às custas da regulação frouxa da ANS, capturada pelos interesses do mercado. Saiu da Agência um presidente que antes era da Qualicorp e acaba de ser reconduzido um diretor que já serviu à Amil. Há uma porta giratória, que também destina cargos comissionados para ex-funcionários de operadoras que retornam às empresas quando deixam a agência. Os planos de saúde nunca prestaram serviços tão ruins, têm rede insuficiente, filas de espera, pagam mal os médicos, vendem falsos planos coletivos para fugir da regulação, dão calote no SUS, pois não fazem o ressarcimento.
Há um descontentamento geral…
A indignação de médicos e usuários desse setor já equivale ao descontentamento em relação ao SUS. Ano que vem tem eleições, os planos doam recursos para candidatos que devolvem em cargos e favores. Nos sistemas universais, planos privados representam a menor parte dos gastos totais com saúde, não passam de 15%, aqui já atingem 25% da população, graças ao crescimento de planos baratos no preço e medíocres na cobertura.
E temos novidades que podem levar à maior segmentação de coberturas e a planos ruins, como o poder conferido às intermediadoras – a Qualicorp – e a chegada do capital estrangeiro, com a venda da Amil para a United, maior seguradora americana, um negócio aprovado a toque de caixa pela ANS e Cade.
Como anda o movimento contra subsídios públicos aos planos, que tem o apoio do Simesp?
Com a evolução de rendimentos de parte da população, com maior acesso a bens de consumo, o governo federal, de olho nas eleições, aposta na preferência da população pelos planos populares e acena com subsídios públicos às operadoras. É mais um golpe que descaracteriza ainda mais o SUS como sistema universal. No mundo, a ascensão das massas trabalhadoras impulsionou sistemas públicos de saúde universais e robustos. Aqui querem seguir o exemplo que não deu certo, dos Estados Unidos, veja-se a Reforma do Obama, que tenta colocar nos trilhos o sistema mais caro do mundo e que excluiu tanta gente daquele país da assistência. A presidente Dilma recebeu, em março, os donos de planos de saúde para tratar de possíveis isenções e desonerações ao setor.
Há um movimento contrário a esses subsídios…
Foi iniciado um movimento, liderado pelo Idec, que já conta com dezenas de entidades e mais de 20 mil adesões individuais e que defende o fim de subsídios públicos diretos e indiretos para planos e seguros de saúde privados: atendimento de clientes de planos de saúde em serviços do SUS, sem ressarcimento aos cofres públicos; gastos com planos privados dos servidores públicos; revisão da renúncia fiscal, com dedução de gastos com planos de saúde no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas; fim de isenções tributárias a planos de cooperativas e de filantrópicos; e limitação dos recursos do Tesouro Nacional destinados ao funcionamento da ANS.
É preciso haver um reordenamento do mercado de planos de saúde, com estipulação de barreiras à entrada de planos ruins, explicitação dos conflitos de interesse, isso casado com a expansão da oferta pública e melhoria da qualidade da assistência no SUS.
Qual sua opinião sobre a gestão por meio de organizações sociais?
Houve uma fase do embate ideológico, plebiscitário, que foi superada, pois o modelo está implantado e redes inteiras, como a estadual e a do município de São Paulo, estão reféns das OSs. Além de dúvidas sobre a legalidade, faltam evidências se de fato tornaram mais ágil e eficiente a gestão. Parece que as filas não diminuíram, o sistema de saúde continua pouco resolutivo e os usuários seguem insatisfeitos. Não houve economia para o SUS, pois as OSs consomem mais recursos e não investem em infraestrutura, e há pouca transparência no cumprimento dos contratos, como apontam os tribunais de contas, muitas nem entregam a produção contratada. A rede de saúde da capital, por exemplo, foi esquartejada, há mais de 10 organizações gestoras, que promovem uma batalha salarial, uma concorrência predatória, que leva à falta e alta rotatividade de médicos. Mantém contratos precários, temporários, com CNPJ, cooperativas etc. Aniquilam a possibilidade de estruturar um plano de cargos e salários.
As OSs se sobrepõem à administração direta?
O duplo comando (OS e prefeitura ou estado) não é só nas relações de trabalho mas na organização dos serviços. Essa entrega da gestão para entidades tão heterogêneas entre si dificulta padrões homogêneos e definidos de metas, funcionamento, gestão e remuneração de pessoal. Sugiro uma espécie de moratória do modelo, a não entrega de novas unidades para OSs, para que se possa fazer uma avaliação mais profunda dos impactos. Será impossível retomar tudo para a administração direta engessada.
Há outras propostas em curso, parcerias público-privadas e Fundações Públicas de Direito Privado, também polêmicas, e poderá haver um cenário de competição de várias modalidades de gestão.
Me parece que esses modelos privados fragmentados, que trabalham por produção e não se integram ao SUS, tornarão difícil a instituição das regiões de saúde e a ordenação do acesso do SUS pela atenção primária, assegurando a continuidade do cuidado, tampouco irão solucionar gargalos dos serviços especializados, o acolhimento de doentes crônicos e idosos, e a sobrecarga dos pronto-socorros, alguns dos grandes nós do SUS.
Você é coordenador do estudo Demografia Médica no Brasil. Faltam médicos? É realmente necessário trazer profissionais de outros países?
O Brasil tem 400 mil médicos mas faltam sim profissionais em inúmeros municípios, nas periferias e em vários serviços do SUS. Há pessoas sofrendo e morrendo com a falta de médicos, não se pode ser insensível a essa realidade.
Deveria haver uma combinação de medidas. A melhoria da remuneração e condições de trabalho dos médicos, o Provab, corrigindo as distorções desse programa, e o incentivo a estrangeiros, desde que com a devida revalidação de diplomas, podem amenizar o problema em curto prazo. A adoção de planos de carreira e o maior aporte de recursos para o SUS só teriam efeito de médio prazo. Mas há o risco de o aumento global de médicos, via abertura de mais escolas ou revalidação automática de diplomas estrangeiros, levar esses novos médicos mal formados para os mesmos lugares onde já há elevada concentração, nos grandes centros e no setor privado. Não haverá solução definitiva sem mudanças estruturais no sistema de saúde, sem mais financiamento público e sem a presença do Estado que diminua a concentração regional da produção e da renda e que atraia profissionais às regiões desassistidas.

Fonte: Revista Dr!, Maio/Junho de 2013