quinta-feira, 21 de março de 2013

Carta Dra. Lisieux



Essa carta foi encaminhada por uma amiga cirurgiã pediátrica e presidente da Sociedade de Cirurgia Pediátrica do Estado do Rio de Janeiro, para o senador Cristovam Buarque.

Acho que todos os argumentos apresentados são extensivos ao PROVAB

Caro Senador Cristovam Buarque:

Gostaria de tomar a iniciativa de dialogar consigo sobre o PL que propõe, a respeito do serviço social médico obrigatório após a formação universitária. Me parece que há vários pontos obscuros e esta proposta, lamentavelmente, não será a solução para os problemas. 
Para tanto, proponho alguns dados reais, que possivelmente podem contrarestar algumas idéias que prevalecem, até compreensivelmente, entre as pessoas que não são médicos.

De fato não é preciso ser especialista na área para saber que vamos mal, mas talvez seja aconselhável a ajuda de especialistas na área para saber porque vamos mal e como podemos melhorar. Afinal, senador, se os médicos não forem as pessoas a serem consultadas sobre como melhorar a atuação médica, quem o é?

Porque, é claro, seria um absurdo embarcar na idéia de que os médicos são uma 
corporação descomprometida com o interesse público. Tal proposta seria semelhante o clichê de que todos os políticos são desonestos e descomprometidos com a causa pública, o que certamente não é verdade.

Os principais motivos para os médicos não aceitarem empregos nas cidades menores do país, senador, não se devem à falta de compromisso social ou preconceito de classe, senador, se devem à falta de segurança trabalhista, falta de equipamento, falta de estrutura e ausência de possibilidade de prover educação para os filhos e emprego para os cônjuges nas pequenas cidades. A frase que usa em sua justificativa, atribuindo os problemas que discutimos apenas a interesses financeiros é absolutamente injusta conosco, senador. A tal medicina sofisticada, distribuída em ilhas de excelência a que se refere, é simplesmente medicina de bom padrão, senador, e deve ser minimamente distribuída a todos. Não cabe uma medicina pobre para gente pobre. Médico inexperiente e não equipado para as pequenas cidades pobres e médico experiente e bem equipado nas tais ilhas. Seu projeto, senador, infelizmente, só perpetua a desigualdade. Culpando e penalizando o profissional médico por ela. Os estudantes precisam, mesmo, se convencer de que é preciso e possível oferecer tratamento de saúde a cada um dos cidadãos. Mas isso não se faz mediante distribuição da precariedade, e sim mediante política distributiva do que tem boa qualidade.

As principais causas de mortalidade no país são doenças cardiovasculares (primeira causa), tumores malignos (segunda causa) e trauma (terceira causa, mas a principal entre adultos jovens). Isto mostra, senhor senador, que, ao contrário da mentalidade facilmente assumida de que as grandes mazelas de saúde do país são simples e devidas apenas à falta de assistência básica, o problema é, infelizmente, mais complexo. É claro que medidas eficientes de prevenção podem melhorar bastante esses números, mas não podem neutralizá-los, além de depender de atitudes muito mais complexas do que medidas clínicas. A prevenção do trauma depende de melhores estradas, melhores condições de segurança no trabalho e melhor educação com relação à segurança das crianças. A prevenção de doenças cardiovasculares depende absolutamente de modificações culturais (do padrão alimentar, principalmente). A prevenção de doenças oncológicas depende ao extremo da modificação de fatores ambientais. É claro que, num sistema de saúde perfeito, a prevalência destes problemas cai. No entanto, para contrabalançar, numa população que envelhece (e isto acontece no Brasil, a olhos vistos), estas doenças serão, certamente, uma via final comum incoercível, porque são as doenças que acomentem a faixa etária mais velha da população (e isto acontece também nos países desenvolvidos e com sistemas de saúde considerados excelentes). Concluindo: um médico inexperiente munido apenas de boa vontade, capacidade de raciocínio, um bloco de receituário e uma mesa de exames, definitivamente, não resolve o problema da saúde no interior.

Um dos maiores problemas de saúde mundial (segundo ninguém menos do que a OMS) é tratamento cirúrgico. Milhões de pessoas mundo afora sofrem e têm limitações ou inutilidade para o trabalho por sequelas de fraturas não operadas, partos traumáticos, hérnias não operadas, cataratas. E isto, caro senador, de novo, precisa de uma estrutura muito mais complexa para ser resolvido. Para traçar um painel aproximado dos números envolvidos apenas considerando doenças comuns de tratamento cirúrgico relativamente simples, mais de 1% das crianças apresentam hérnias inguinais, ao lado de 5% dos adultos americanos. 20% dos adultos acima dos 60 anos têm catarata. A transferência de pacientes de cidades menores para cidades maiores para tratamento de saúde, caro senador, praticamente nunca é para tratamento de casos simples de doenças comuns, mas sim para tratamento de doenças mais complexas, sequelas de condições não tratadas anteriormente, doenças cirúrgicas, tumores malignos, sequelas do envelhecimento e malformações congênitas. Um médico recém formado, por mais competente que fosse e com mais boa vontade que demonstrasse, não conseguiria resolver isso sem estrutura adequada. Muito mais cara do que um salário, uma mesa, um bloco de papel e um estetoscópio.

O currículo básico das faculdades de medicina já contempla medicina social na mais absoluta maioria das escolas e tem o objetivo primário de formar generalistas, em especial nos últimos anos. Já há programas de extensão, com atuação de estudantes em unidades básicas de saúde, por exemplo, como rotina nas nossas universidades. De forma geral, um estudante de medicina já tem, em sua formação de base, exposição às mazelas de saúde do nosso país. Um estudante de medicina estuda em torno de dois anos matérias de formação geral (técnica e social) no chamado ciclo básico, mais 3,5 anos matérias “clínicas”, onde os problemas clínicos das várias áreas são propostos em conjunto com uma vivência prática controlada e fortemente supervisionada e 1,5 ano (chamado de internato), dividido em ciclos de atividade clínica nas áreas básicas da medicina (clínica geral, pediatria, ginecologia e clínica cirúrgica), também sob supervisão. Vem daí, senador, que nenhum recém-formado no padrão atual de currículo médico está apto, por exemplo, a operar. A formação médica obrigatória das universidades só dá a este jovem, no máximo, em torno de 6-8 meses de convívio com clínica de doenças cirúrgicas, nos quais há pouquíssima ou nenhuma oportunidade de operar. No que se refere às demais áreas, em torno de 4 meses para cada uma delas. Um médico recém formado precisa imperativamente de mais experiência, sr senador. Ele precisa atuar ainda durante algum tempo com uma supervisão presencial, próxima, porque ele ainda tem limitações sérias para distinguir algumas situações e para atuar em alguns casos de alta complexidade. A residência médica é uma necessidade imperativa, embora, infelizmente, não esteja disponível para ao menos metade dos médicos recém-formados do país. Ela não serve para formar especialistas sofisticados somente. Serve para formar bons clínicos, ginecologistas, pediatras, cirurgiões, psiquiatras.

Um médico recém-formado levado a trabalhar sem supervisão e com tarefas acima de suas capacidades é um convite a erros involuntários – e frequentemente inconscientes.

Não é verdade que os cursos de medicina se dediquem à alta tecnologia a nível de formação de graduação. Mas também não é aconselhável que ensinem a tratar infartados (doença comum) sem indicar cateterismos diagnósticos e terapêuticos e observação em UTI (equipamento de alta tecnologia). Não é razoável ensinar estudantes a diagnosticar cálculos de vesícula biliar (doença comum) sem dizer que o tratamento preferencial é colecistectomia videolaparoscópica (alta tecnologia). Ou tratar doenças malignas (doenças comuns) sem diagnóstico específico e quimioterapia (alta tecnologia). A educação médica em torno de verminoses e partos normais tão somente é um engodo, senador. Precisamos ensinar o estado da arte. Que não é o mesmo da época do famoso jeca-tatu. E me refiro aos generalistas, não aos (poucos) especialistas em áreas específicas.

Médicos são tão cidadãos quanto as demais pessoas, senador. Têm, em geral, mais preocupação social, inclusive, por causa da exposição a problemas graves e injustiças variadas como problemas de todo dia. Também queremos resolver os problemas. Mas resolver de fato.

Um abraço

Obrigada por ler estas considerações, nós médicos estamos precisando desesperadamente de interlocutores.
Lisieux Eyer de Jesus, cirurgiã pediátrica, TCBC-RJ, presidente da Sociedade de Cirurgia Pediátrica do Estado do RJ.

Um comentário:

  1. Desabafo pertinente.
    O senador Cristovam Buarque, savemos ser um valoroso defensor da Educação, e sempre teve o nosso apoio incondicional, enveredou por um caminho, novo para ele, complexo e com propostas que destoam do que conhecemos para o resgate da Dignidade dos profissionais de saude e da valorização da asisstencia PÜBLICA. O SUS está há mais de 10 anos, patinando, sem interesse dos governos de por em prática o que já existe no papel. É fundamental dotação orçammentaria adequada, boa gestão e valorização dos profissionais para êxito do SUS e extinguirmos o quadro calamitoso da Saúde Pública.
    Só falta vontade política, ai, então o nobre Senador poderá contribuir, decisivamente para um melhor porvir do SISTEMA ÜNICO DE SAÚDE como o INGLÊS mostrado na abertura das Olimpiadas de Londres.

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